No final de 2006, dois integrantes da banda paulistana Gianoukas Papoulas (nome digno de constar em texto do Hergé) montaram um projeto paralelo, chamado Lestics. A idéia básica, compor com liberdade, gravar em home studio e colocar as gravações na internet para download gratuito. Ou seja, com o acréscimo da tecnologia, pôr em prática mais uma vez os preceitos punks de 1976. Incrível como, 30 anos depois, a busca pela autonomia continua a guiar bandas como forma viável e possível. Existe algo mais insuportável do que depender de terceiros para fazer alguma coisa? Felizes são os pintores e os escritores, que podem fazer seu trabalho de forma solitária, e nem precisam passar pelo (desgastante e caro) processo de gravação em estúdio. Não precisam marcar ensaios, conciliar horários, administrar egos feridos. E o melhor de tudo, não precisam procurar baterista. Quanto menos gente envolvida, melhor. Não dependa de ninguém, jamais. O Lestics seguiu essa idéia, a busca do máximo quando se tem o mínimo. Dois músicos, com a ajuda complementar de um artista plástico (para a capa e o site), um DJ (algumas programações) e um técnico em masterização. Foi o suficiente, e a famigerada tecnologia se incumbiu do resto.
(na aba oposta do leque artístico estão os cineastas, ainda asfixiados pela impossibilidade de autonomia e completa independência, já que o cinema exige um investimento himaláico, muitas e muitas pessoas envolvidas e, no final de tudo, um número de salas de exibição simpáticas à causa em número abaixo do nível do mar. Calma, algo está acontecendo neste exato momento: http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2007/12/04/327439610.asp. A era punk finalmente chegará aos cinemas? Morrerão os dinossauros progressivos captadores de recursos públicos? Respondam, respondam)
Assim, ocorre o seguinte: o que importa é o processo, é a felicidade de aprender e de se aprimorar, de ver seu produto chegar às pessoas que realmente estão interessadas nele. E se não chegar, isso é o que menos importa. Afinal, o que vale mais, uma platéia menor, atenta e interessada, ou uma multidão bêbada pulando em frente ao palco montado com o dinheiro de uma empresa de telefonia celular, banco, cerveja ou refrigerante? Não precisa responder.
(mais um parêntese: há uns três anos assisti a um show do Billy Bragg, só voz e guitarra, lugar de tamanho médio com um público de cerca de 200 pessoas, acho. Os aplausos não eram no final de cada música, mas sim no final de cada frase, algo que eu nunca tinha visto antes. Gostaria de ter entendido mais do que ele cantou, o bardo é inglês, mas sinceramente não sei que língua fala. Passei 10 anos estudando o idioma, em duas escolas, e tenho esses certificates inúteis. Quero meu dinheiro de volta)
A questão tecnológica e econômica: porque gastar milhares de dólares em um estúdio profissional estilo L.A., se podemos obter um resultado (semelhante / aceitável / apenas um pouco inferior) em um McIntosh caseiro? “Pelo timbre, pelo timbre perfeito”, retruca o dono-de-estúdio-estilo-L.A., defendendo seu território. “E o timbre perfeito sobreviverá após sua mutação para 128 Kbps e, céus, depois de ser anexado a um ícone dentro de uma página na Internet?” devolve o dono do McIntosh caseiro cheio de programas de última geração, muitos deles pirateados. E agora? E agora? Um Mesa-Boogie em volume máximo dentro de uma sala com tratamento acústico, ou um reles plug-in digital de guitarra? A provável perfeição ou o custo-benefício? Respondam, respondam. “Depende do objetivo” não vale.
O Lestics escolheu a segunda opção, e não se arrepende. O duo é Olavo Rocha (voz) e Umberto Serpieri (o restante, a parte que falta). Em março de 2007 lançaram o primeiro trabalho, chamado “Nove Sonhos” (ouça em http://www.lestics.com.br/). A gravação e mixagem foram feitas em um computador caseiro, com a utilização de programações eletrônicas. Dizem por aí que quem faz a mixagem não deve fazer a masterização. Dessa forma, a master veio de um estúdio externo. Poucos meses depois saiu o novo álbum, “les tics”, com suas nove faixas disponíveis no site, incluindo a capa. Ouça, grave, participe, tire suas conclusões. Um folk-country diferente, com bateria eletrônica, violões-base e arpejos de guitarras limpas e tremolos, teclados jovem-guarda, cantor de dicção clara e letras curtas e sintéticas, como esta:
Gênio (Lestics)
Shakespeare e os gregos
já disseram tudo antes
E você não quer viver
à sombra de gigantes
Três ou quatro genes
te separam da grandeza
Mas culpar seus pais
não é da sua natureza
Você tem a alma
atormentada de um gênio
Pena que te falte
uma pitada de talento
Só a solidão do topo
iria te acalmar
Todo mundo te entende
e isso te parece tão vulgar
Você tem a alma
atormentada de um gênio
Mas te falta
o talento
Para finalizar, o texto realismo-fantástico-lisérgico-anos-60 de Fernando Tucori, jornalista do site Rockwave (http://www.rockwave.com.br/). Está no release da banda. Acho que só serei capaz de escrever desse jeito depois da décima caneca de Guiness, e eu nunca passei da terceira. A Guiness é muito cara. A quarta é sempre Bohemia, baita nome legal. E sem nenhum axé/pagodeiro como garoto-propaganda.
“les tics
Vindo de uma temporada de imersão em Hunter Thompson e de uma matéria na mesma linha, “les tics”, da banda Lestics me serve como válvula de descompressão. Depois de ler a alma atormentada chapada de ácido no meio do deserto, em Las Vegas, é uma delícia ser conduzido pelos Lestics a uma viagem pela alma humana em nove capítulos. São nove maneiras diferentes de se perder dentro de alguém e, em contrapartida, achar-se em outro lugar, porque tudo aquilo que não foi capaz de te destruir, você é capaz de transformar em poesia.
Você estranha com admiração, você admira com estranheza, você vai negar, vai achar que a culpa é sua, vai achar que não é culpa de ninguém, é inevitável, que tudo está escrito mas mesmo assim muda, e que isso é que é o caos e não vai adiantar nada você perguntar ao caos por que é que ele é assim. É assim que é, o mundo é assim, a vida é assim e você não é um herói. Nem eu sou. Nem os Lestics. Quem faz de si um animal selvagem, fica livre da dor de ser um homem. Os Lestics não fazem nem um nem outro. Eles são homens e pagam em música a dor de o serem.” (Fernando Tucori)
Nossa.
(na aba oposta do leque artístico estão os cineastas, ainda asfixiados pela impossibilidade de autonomia e completa independência, já que o cinema exige um investimento himaláico, muitas e muitas pessoas envolvidas e, no final de tudo, um número de salas de exibição simpáticas à causa em número abaixo do nível do mar. Calma, algo está acontecendo neste exato momento: http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2007/12/04/327439610.asp. A era punk finalmente chegará aos cinemas? Morrerão os dinossauros progressivos captadores de recursos públicos? Respondam, respondam)
Assim, ocorre o seguinte: o que importa é o processo, é a felicidade de aprender e de se aprimorar, de ver seu produto chegar às pessoas que realmente estão interessadas nele. E se não chegar, isso é o que menos importa. Afinal, o que vale mais, uma platéia menor, atenta e interessada, ou uma multidão bêbada pulando em frente ao palco montado com o dinheiro de uma empresa de telefonia celular, banco, cerveja ou refrigerante? Não precisa responder.
(mais um parêntese: há uns três anos assisti a um show do Billy Bragg, só voz e guitarra, lugar de tamanho médio com um público de cerca de 200 pessoas, acho. Os aplausos não eram no final de cada música, mas sim no final de cada frase, algo que eu nunca tinha visto antes. Gostaria de ter entendido mais do que ele cantou, o bardo é inglês, mas sinceramente não sei que língua fala. Passei 10 anos estudando o idioma, em duas escolas, e tenho esses certificates inúteis. Quero meu dinheiro de volta)
A questão tecnológica e econômica: porque gastar milhares de dólares em um estúdio profissional estilo L.A., se podemos obter um resultado (semelhante / aceitável / apenas um pouco inferior) em um McIntosh caseiro? “Pelo timbre, pelo timbre perfeito”, retruca o dono-de-estúdio-estilo-L.A., defendendo seu território. “E o timbre perfeito sobreviverá após sua mutação para 128 Kbps e, céus, depois de ser anexado a um ícone dentro de uma página na Internet?” devolve o dono do McIntosh caseiro cheio de programas de última geração, muitos deles pirateados. E agora? E agora? Um Mesa-Boogie em volume máximo dentro de uma sala com tratamento acústico, ou um reles plug-in digital de guitarra? A provável perfeição ou o custo-benefício? Respondam, respondam. “Depende do objetivo” não vale.
O Lestics escolheu a segunda opção, e não se arrepende. O duo é Olavo Rocha (voz) e Umberto Serpieri (o restante, a parte que falta). Em março de 2007 lançaram o primeiro trabalho, chamado “Nove Sonhos” (ouça em http://www.lestics.com.br/). A gravação e mixagem foram feitas em um computador caseiro, com a utilização de programações eletrônicas. Dizem por aí que quem faz a mixagem não deve fazer a masterização. Dessa forma, a master veio de um estúdio externo. Poucos meses depois saiu o novo álbum, “les tics”, com suas nove faixas disponíveis no site, incluindo a capa. Ouça, grave, participe, tire suas conclusões. Um folk-country diferente, com bateria eletrônica, violões-base e arpejos de guitarras limpas e tremolos, teclados jovem-guarda, cantor de dicção clara e letras curtas e sintéticas, como esta:
Gênio (Lestics)
Shakespeare e os gregos
já disseram tudo antes
E você não quer viver
à sombra de gigantes
Três ou quatro genes
te separam da grandeza
Mas culpar seus pais
não é da sua natureza
Você tem a alma
atormentada de um gênio
Pena que te falte
uma pitada de talento
Só a solidão do topo
iria te acalmar
Todo mundo te entende
e isso te parece tão vulgar
Você tem a alma
atormentada de um gênio
Mas te falta
o talento
Para finalizar, o texto realismo-fantástico-lisérgico-anos-60 de Fernando Tucori, jornalista do site Rockwave (http://www.rockwave.com.br/). Está no release da banda. Acho que só serei capaz de escrever desse jeito depois da décima caneca de Guiness, e eu nunca passei da terceira. A Guiness é muito cara. A quarta é sempre Bohemia, baita nome legal. E sem nenhum axé/pagodeiro como garoto-propaganda.
“les tics
Vindo de uma temporada de imersão em Hunter Thompson e de uma matéria na mesma linha, “les tics”, da banda Lestics me serve como válvula de descompressão. Depois de ler a alma atormentada chapada de ácido no meio do deserto, em Las Vegas, é uma delícia ser conduzido pelos Lestics a uma viagem pela alma humana em nove capítulos. São nove maneiras diferentes de se perder dentro de alguém e, em contrapartida, achar-se em outro lugar, porque tudo aquilo que não foi capaz de te destruir, você é capaz de transformar em poesia.
Você estranha com admiração, você admira com estranheza, você vai negar, vai achar que a culpa é sua, vai achar que não é culpa de ninguém, é inevitável, que tudo está escrito mas mesmo assim muda, e que isso é que é o caos e não vai adiantar nada você perguntar ao caos por que é que ele é assim. É assim que é, o mundo é assim, a vida é assim e você não é um herói. Nem eu sou. Nem os Lestics. Quem faz de si um animal selvagem, fica livre da dor de ser um homem. Os Lestics não fazem nem um nem outro. Eles são homens e pagam em música a dor de o serem.” (Fernando Tucori)
Nossa.