sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Crítica? Que Crítica?



A crítica musical deve ser feita após audição atenta do trabalho do artista, ou seja, do criticado. E o crítico deve necessariamente entender do assunto e buscar ao máximo não colocar seu gosto pessoal naquilo que escreve. Difícil, hein? Quase impossível. “Na crítica literária, o crítico não tem outra alternativa que não a de converter a vítima que está analisando em algo à sua semelhança”. Antes que algum deles reclame, informo que a frase entre aspas não é minha, mas de John Steinbeck, o pai de Tom Joad. Música não é literatura, e a questão aqui é um episódio recente em que um famoso jornalista carioca comentou o trabalho de bandas brasileiras que gravaram versões de músicas dos Beatles, em homenagem aos 40 anos do álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band.

Há milênios passados, habitaram o planeta escritores que traçavam paralelos entre o trabalho de músicos e bandas com o mundo que nos rodeia. A crítica como literatura, Lester Bangs, Greil Marcus, entre outros. Bons tempos em que as pessoas tinham paciência para ler quase-tratados intelectuais sobre temas tão sem importância como bandas e discos de rock (... but I like it). Sim, Lester e Marcus foram os mentores do modernismo musical-impresso. Os monet da crítica (menos, menos). E hoje? Poucas frases apenas. Não há “literatura-comparada” alguma, isso não importa mais, e talvez não deva importar mesmo, não sei. O músico não precisar ser ou estar ligado ao seu próprio tempo. Essa análise tomaria tempo, e em alguns casos, também espaço. Cada mídia com seu estilo e proposta, não? Em blogs, por exemplo, a crítica fast-food pode ser a esperada, apesar do espaço disponível.

Para não ser injusto, sobrevive um escritor do jornal O Globo que ainda tece conjecturas inteligentes em sua coluna semanal, que nem sempre trata de música. O sujeito é bom. E devem existir muitos outros também. Alguns escribas da Rolling Stone brasileira. Quem conhecer mais, me avise. Onde estarão os discípulos de Ana Maria Bahiana?

(a quem se interessar: disponíveis em português os livros “Reações Psicóticas”, de Lester Bangs; e “A Última Transmissão”, de Greil Marcus, ambos da Conrad Editora).

O jornalista famoso, que conta com muitos e muitos leitores, escreveu isto:


"Quinze bandas independentes brasileiras lançaram pela internet o disco "Sargento Pimenta 2007", uma releitura do disco dos Beatles "Sergeant Pepper's Lonely Hearts Club Band" em homenagem aos 40 anos do lançamento pelos Beatles ...Como sói acontecer em iniciativas deste gabarito, as gravações replicam a vida de um ascensorista, num constante sobe e desce de qualidade. No ponto mais baixo está "Lovely Rita" com a formação carioca Fuzzcas, mal cantada e mal tocada com um solo de guitarra sem qualquer inspiração. Em compensação, muita gente fez bonito. Madame Mim foi a mais ousada com sua versão da faixa título totalmente eletrônica com um vocal suave e uma certa subversão da melodia ..."

A raiva de alguém que não concordou com a forma como foi feita a crítica (ou seja, eu): onde fica o ponto mais baixo, meu caro tinhorãozinho básico? No porão? Na garagem? Se for lá, talvez a frase seja um elogio. Se não, por que e para que isso? Também não entendi a comparação das músicas com a vida de um ascensorista, que pelo que eu saiba oferece sempre o mesmo serviço, com a mesma qualidade, independente do andar solicitado por quem adentrar ao elevador. Incluindo o "ponto mais baixo".

Então, a prova dos nove (expressão do fundo do baú) deve ser tirada ouvindo-se a versão dos Fuzzcas no http://sargentopimenta2007.blogspot.com/, e também suas próprias músicas no site http://www.fuzzcas.com/. A banda é boa, a cantora também, e esse negócio de inspiração para solo de guitarra é relativo. Às vezes, expiração é bem melhor. É interessante ver como a banda conseguiu reverter o contexto da frase em seu site, de forma bem humorada. Tem até uma foto do jornalista lá. Falem mal, mas falem de mim.

Fim. Mudando de assunto, vamos agora falar mal de cantores de axé ou pagode que incitam a juventude ao terrível vício sem volta do álcool, condenando-os a uma morte horrível no trânsito se não tiverem amigos abstêmios legais nem dinheiro para o táxi, ou pior, a uma barriga imensa pendendo sem controle para fora da calça. Já notaram que esses malditos pseudo-cantores sempre mantêm uma fundação-de-auxílio-a-crianças-carentes-no-local-miserável-onde-passaram-sua-infância-sofrida? Fazem isso, é claro, para justificar perante não sei quem a bufunfa ganha das cervejarias, inclusive de uma bem conhecida que nem imposto paga. Ou seja, como os impostos no Brasil não retornam em forma de políticas sociais, é preciso que axés e pagodeiros façam propaganda de cerveja para que consigam levar os impostos sonegados ou não à referida comunidade carente, fazendo assim justiça com as próprias papilas gustativas. Faz sentido. Escrevi isso tomando uma, mas preferi Guiness. Não tenho acesso à propaganda que ela faz. Oh Godness, My Guiness.

Ana Maria Bahiana

Aposto que poucas pessoas conseguem saber o momento exato em que disseram para si mesmas, pela primeira vez, “eu gosto de rock’n’roll”. Um momento mágico, mas com efeito nem sempre eterno. Pois eu me lembro: foi quando fui à banca de jornal localizada em frente à COBAL do Leblon e comprei um exemplar de “As Melhores Bandas de Rock de Todos os Tempos”, escrito pelos mestres Ana Maria Bahiana e José Emílio Rondeau. Em número de dez e sem ordem, as bandas eram as seguintes: Beatles; Yes; Sex Pistols; Pink Floyd; Crosby, Stills, Nash & Young; Rolling Stones; Cream; Traffic; The Who e Led Zeppelin. Antes de discordar da lista, informo que os critérios foram definidos lá, tipo músico-solo não vale, importância da obra completa, influência sobre outras bandas, etc. Da lista, eu só não concordaria com o a inclusão do Traffic. Colocaria os Doors, mas a Ana disse que eles eram só o Morrison, e esse foi justamente o critério adotado para não incluí-los. Sim, notar que à época ainda não existiam U2 nem Smiths nem Police, que não poderiam ficar de fora. Ou existiam mas ainda não faziam tanto sucesso, como o caso do Police (ouço vozes discordantes: Smiths e Police na lista, heresia, heresia!). A revista não traz nenhuma data, calculo que tenho sido publicada por volta de 1979 ou 1980. Depois disso não é, porque o texto sobre os Beatles não cita o encontro de John com Mark. Quem comprasse o fascículo ganhava grátis uma fita virgem C-60 high-performance da MAC. Uêba.

Nick Hornby ainda não tinha escrito Alta Fidelidade. Acho que ele leu “As Melhores Bandas de Rock de Todos os Tempos”.

Falando da professora de muitos que escrevem por aí, o Música Folk! recupera um texto dela que saiu algum tempo depois, em fevereiro de 1983, na extinta revista Pipoca Moderna. A revista publicava coisas interessantes: “Who dá adeus à estrada”; “O que aconteceu com o Pink Floyd?”; “Por que a rádio FM é tão chata?”. Rapaz, o assunto é sempre o mesmo.

(por curiosidade, abri minha caixa de fitas antigas, guardadas no fundo da gaveta inferior do armário, onde em casas-padrão habitam os sapatos. Lá estava ela, a MAC high-performance. Tinha que ser ela, a única MAC no meio de dezenas de BASFs e Phillips. Abri a caixa, e estava escrito, na capa interna: Rumours - Fletwood Mac, com a lista das faixas. Não lembro se foi alguma piada esse negócio de gravar o Fletwood numa MAC, ou se foi só coincidência. Coloquei-a no Tape-Deck - sim, ainda tenho isso. Nada, só barulho. Como a Stevie Nicks não era adepta do rock industrial, deduzi que a fita estava estragada mesmo. Apesar da lata de lixo ao alcance da mão, guardei a fita na caixa, e guardei a caixa no fundo do armário. Fechei a porta, e tive a certeza de que, realmente, eu devo ter alguma espécie de problema)

Bem, voltando, já que falei de crítica musical no post aí de cima, resolvi recuperar um texto antigo que trata justamente disso. De uma maneira correta e inteligente, independente da opinião que se tenha sobre o assunto. Algumas partes não se aplicam mais de forma ampla, como a que fala dos artistas-heróis. Com a Internet e outras tecnologias, sobraram poucos, só alguns figurões, e hoje muitos deles tentam salvar as migalhas. Mas a defesa apaixonada da Crítica vale a leitura. A guerra de doidos continua.


Porque Amo a Crítica
(Tomando posição numa guerra de doidos)

Ana Maria Bahiana
Revista Pipoca Moderna – fevereiro de 1983

“A essência do drama é a complexidade; a fatalidade do heroísmo é a necessidade de vencer um inimigo. O herói se alimenta da tragédia. Sem tragédia, como existiriam feitos heróicos? Dessa forma, o líder glorioso sempre se sente compelido a declarar guerra. Algum povo, algum grupo, algum indivíduo deve ser sombrio e mau para que, vencendo-o, o herói prove o seu heroísmo” (Dane Rudhyar).

“Uma das discussões mais interessantes da ruptura punk 76 talvez nunca chegue ao Brasil: a discussão do papel do artista popular, sua real dimensão. Os punks diziam – diziam através de fatos e atos, porque a prática é sua fala – que qualquer um era artista, que não deviam existir fronteiras entre palco e platéia, que “criar” não era um ato divino ou inspiracional mas um acaso, uma brincadeira. Essa discussão se deu porque do outro lado o artista tinha-se hipertrofiado até o ridículo, tinha se tornado, de fato, “divino”, olímpico, inacessível.
Estamos chegando a este ponto aqui, agora, mas ninguém parece disposto a discutir o assunto.
Todo ser humano é potencialmente capaz de criar. As sociedades “primitivas” vivem da criação: na Indonésia, por exemplo, o “lazer”, ou seja, a atividade de inventar e descobrir, ocupa dois terços do dia; o “trabalho”, ou seja, a subsistência, toma não mais que um par de horas.
Mas nossas sociedades “civilizadas”, capitalistas, socialistas ou mais ou menos, não precisam de indivíduos criativos. Precisam de mão-de-obra. Técnicos. Operários.
O que fizemos do quinhão criador que tivemos, um dia? Abrimos mão dele em troca de um lugar no mercado de trabalho. E delegamos esse poder a outrem. A outro técnico, outro trabalhador: o que, em troca de nosso amor, de nosso dinheiro e de nosso tempo, criará por nós. Eventualmente – uma ou duas vezes em cada geração, mais ou menos, num lance de dados da genética – ele será completamente criativo. Genial. Absoluto. Tirará do nada estradas, formas e cores. É raro, mas acontece. Os demais serão o que devem ser, o profissional assim como somos o que fizeram de nós: profissionais do entretenimento. Ele nos divertirá após um dia duro de trabalho não-criativo. Ele encarnará nossas fantasias. Ele viverá nossos desejos de revolta, libertação e protesto.
É um belo trabalho, um trabalho honesto que gera empregos, divisas e eventualmente enriquece dezenas de pessoas, ano após ano. É uma boa carreira, capaz de rápida evolução mesmo em anos de crise econômica, de salários ralos, no início, mas bastante compensadores após anos no mercado.
Não posso falar das outras especialidades desse mercado. Em música popular, contudo, há algum tempo as coisas não se passam bem assim.
Acho que não estou exagerando quando digo que 99 por cento de nossos artistas se vê não como um profissional, mas como um herói. Alguém diretamente investido em suas funções por Deus. Não o artesão de possibilidades conhecidas – harmonias em uso em nossa cultura, ritmos populares, emissão de voz e som – mas sacerdote de uma chama exclusiva, gerada no âmago de seu ser. Ele é diferente. Ele é melhor. Ele é especial Ao seu redor, em geral gravitam satélites – assessores, secretários, divulgadores. Como uma criança ou um doente ele não é capaz de lidar com o mundo real – os satélites se imcumbem disso. Ele se reserva exclusivamente para o elevado dom da criação.
Já parei de contar as músicas e os shows que falam só sobre isso. Sobre como o artista é especial, atormentado pela paixão da criação, superior aos outros seres humanos (a platéia) que se debatem nas avarezas do dia a dia.
Já parei de contar as reclamações contra público e imprensa que “querem aparecer mais” que o artista. Querem ser iguais. Querem ser vaidosos, imagine! Abaixo a democracia da vaidade! Só quem brilha aqui sou eu.
Dane Rudhyar, homem extremamente sábio em seus 87 anos de filosofia, música, pintura e astrologia humanística, já disse de que o herói mais necessita: de inimigos. Num tempo em que já escassearam os inimigos clássicos – o obscurantismo, a repressão, a polícia – a crítica tem se transformado no inimigo favorito do herói. Ela joga poeira sobre seu ouro. Ela o recorda se sua humanidade, de seu papel, de suas limitações.
Ela o avalia: avaliar é um crime no olimpo do herói, ele precisa de adoração, mimos, forças, vibrações positivas. Ela pensa, exercita seu parecer pessoal e, por conseguinte, lembra a todos que pensar e opinar é possível. O herói preferia que, se pensar fosse o caso, era melhor que se pensassem os pensamentos sugeridos por ele, herói.
Essa guerra de doidos não vai acabar nunca. Ela é essencial para a manutenção do status quo e há muitos interesses na manutenção do status quo. O público prefere heróis a seres humanos – ser humano, chega eu! E um diretor de marketing passou 40 minutos me explicando como era essencial manter o artista distante do público para que seus discos vendessem.
Não desejo que a crítica seja a inimiga do herói, nem que seja outro tipo de herói. Sei que ela tem falhas, algumas graves, mas me recuso a discuti-las em público enquanto o ato de opinar, em si, estiver sendo alvo de verdadeiros ataques histéricos. Não quero entrar nessa guerra de doidos em que todos saem perdendo. Quero só dizer o seguinte, dois pontos.
Acredito na crítica honesta. Acredito que uma crítica honesta, mesmo equivocada, é melhor que nenhuma crítica. Acredito que se deve à crítica e à imprensa a sobrevivência de muitas carreiras de profissionais de música durante períodos em que os inimigos eram outros. Acredito que a critica honesta, mesmo com todas as suas falhas, cumpre um papel essencial no bom jornalismo, que é exercitar junto ao leitor a capacidade de emitir opinião. Acredito que o diálogo e até a discussão são melhores que a um monólogo.
Recuso um a um os argumentos dessa guerra de doidos. Não acredito no clichê de que o crítico é um artista frustrado: um crítico critica porque gosta disso, porque compreende verbalmente o mundo abstrato da música. Não acredito no clichê de que o crítico deva ser músico ou compositor para poder escrever: ele deve é saber criticar, há sabedorias e técnicas específicas de seu ofício. Não acredito no clichê de que o crítico é o vampiro do artista: ambos precisam-se mutuamente; um, porque necessita de assunto, o outro, porque necessita de espaço. Ambos nutrem-se, sim, da fonte comum da música, que é uma das formas mais divertidas e ricas de comunicação entre os homens.
Acredito que a arte é maior que a crítica. Acredito que arte é um conceito que tem sido usado fora de perspectiva. Acredito que todo ser humano é capaz de criar e não deve abrir mão desse dom. Acredito que o artista, genial ou não, trabalhador competente ou não, é um ser humano como qualquer outro. Acredito no poder da palavra. Acredito na alegria da música.
Não acredito em heróis.”
Ana Maria Bahiana

Então é isso. Eu também não acredito em heróis. Só acredito em Bruce Springsteen.